23 de abril de 2011

A cara da mídia do Brasil

Sem dúvida o fato mais chocante no episódio da blitz da Lei Seca, no Rio, que flagrou Aécio Neves dirigindo com habilitação vencida e metabolicamente impossibilitado de soprar o bafômetro, não foi o fato em si , mas o comportamento da mídia demotucana. Os blindados da 'isenção' entraram em cena para filtrar o simbolismo do incidente, 'um episódio menor', na genuflexão de um desses animadores da Pág 2 da Folha. Menor? Não, nos próprios termos dele e de outros comentaristas do diário em questão. Recordemos. Em 24 de novembro de 2004, Lula participou da cerimônia de inauguração de turbinas da Usina de Tucuruí, no Pará. No palanque, sentado, espremido entre convidados, o presidente comeu um bombom de cupuaçu, jogou o papel no chão. Fotos da cena captada por Luiz Carlos Murauskas, da Folha, saturaram o jornalismo isento ao longo de dias e dias. Ou melhor , anos e anos. Sim, em 2007, por exemplo, dois colunistas do jornal recorreriam às fotos de Tucuruí para refrescar o anti-petismo flácido do eleitor que acabara de dar um novo mandato a Lula. O papel do bombom foi arrolado por um deles como evidencia de que o país caminhava a passos resolutos para a barbárie: "Só falta o osso no nariz', arrematava Fernando Canzian (23-07-2007) do alto de sofisticada antropologia social. Sem deixar por menos, Fernando Rodrigues pontificaria em 09-04-2007: "...Respira-se em Brasília o ar da impunidade. Valores republicanos estão em falta. Há exemplos em profusão (...) em 2004, Lula recebeu um bombom. ... O doce foi desembrulhado e saboreado. O papel, amassado. Da mão do petista, caiu ao chão. Lula seguramente não viu nada de muito errado nesse ato. Deve considerá-lo assunto quase irrelevante. ...Não é. No Brasil é rara a punição -se é que existe- para pequenas infrações como jogar papel no chão. Delitos milionários também ficam nos escaninhos do Judiciário anos a fio (...) Aí está parte da gênese do inconformismo de alguns, até ingênuos, defensores de uma solução extrema como a pena de morte. Gente que talvez também jogue na calçada a embalagem do bombom de maneira irrefletida. São "milhões de Lulas", martelava o jingle do petista. São todos a cara do Brasil..."

(Carta Maior; Sábado, 23/04/2011)

10 de abril de 2011

Por uma ideia de nação

Maria Inês Nassif | De São Paulo - 08/04/2011

Intelectual full-time desde que deixou o governo tucano de Fernando Henrique Cardoso, em 1999, o ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira, depois da conturbada campanha eleitoral do ano passado, eliminou seu último vínculo com a política institucional: declarou-se desligado do PSDB, que, segundo ele, caminhou de forma definitiva para a direita ideológica, empurrado pela acomodação do PT na posição da social-democracia, da qual, ao longo de oito anos de governo Lula, acabou por desalojar os tucanos.

O desligamento partidário é que apenas não se concretizou na burocracia do partido por questões de ordem prática: Bresser-Pereira precisa ir pessoalmente ao diretório, para oficializar seu desencanto é marca também o retorno do intelectual à sua origem desenvolvimentista. Bresser-Pereira conta com satisfação ter sido influenciado diretamente pela escola do Iseb de Hélio Jaguaribe e Inácio Rangel, nos anos 50, e pela escola estruturalista cepalina de Celso Furtado. Foi a atração pelo desenvolvimentismo que o levou a abjurar o direito e tornar-se um economista e cientista social do desenvolvimento. Não sem desvios, reconhece. Bresser-Pereira não escapou à sedução do neoliberalismo, nos anos 90, como de resto toda a social-democracia europeia. Mas define uma diferença de origem entre ele e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, como intelectuais: o nacionalismo.

Para Bresser-Pereira, a teoria da dependência associada, de Fernando Henrique, não por intenção do autor, mas por conveniência do “império”, caiu como uma luva para a esquerda americana. No governo, Fernando Henrique não se contradisse: a teoria da dependência associada pregava o crescimento do país com capital externo. O caráter não nacionalista dos governos tucanos era absolutamente compatível com a teoria da dependência associada do intelectual Fernando Henrique.

Bresser-Pereira vai lançar o último livro de uma trilogia que, no seu entender, marca não apenas seu retorno às ideias nacionalistas, mas a formulação do que ele considera uma macroeconomia estruturalista do desenvolvimento. “Construindo o Estado Republicano”, de 2004, é a consolidação dessas ideias no plano político; “Globalização e Competição”, na teoria econômica. O terceiro, “Capital, Organização e Crise Global: Teoria Social para o Longo Século XX: 1900-2008″, fecha o círculo do pensamento de Bresser-Pereira na teoria social.

Valor: O senhor considera que, de alguma forma, tenha antecipado o debate sobre o neoliberalismo?

Luiz Carlos Bresser-Pereira: Antecipei, mas depois afrouxei. Em 1990, dei a aula magna da Anpec [Associação Nacional dos Centros de Pós-graduação em Economia], que depois foi publicada na revista do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], onde fiz a primeira crítica, que eu conheça, ao Consenso de Washington. A esquerda, em geral, só veio a descobrir o Consenso de Washington em 1993. A primeira reunião que deu no Consenso de Washington foi em 1989. Mas eu soube dela, e fiz a minha crítica em 1990. Daí o John Williamson fez um segundo seminário sobre o Consenso de Washington, em 1993. E não sei por que cargas d’água fui convidado, acho que por causa da minha experiência com o Plano Bresser. Estava lá também o José Luiz Fiori. A primeira crítica violenta ao neoliberalismo, pelo menos que eu tenha lido, foi do Fiori, e foi feita a partir da segunda reunião, ou seja, quatro anos depois da minha crítica. Mas foi uma crítica violenta e a minha não foi tanto, porque eu não sou tão de esquerda quanto ele, temos posições um pouco diferentes.


Valor: No momento, o senhor faz um retorno ao nacionalismo. E como foi o encontro com o desenvolvimentismo?


Bresser-Pereira: Eu tinha 20 anos, estava começando o terceiro ano da faculdade de direito, em 1955, era católico da Ação Católica e ia ser juiz de direito. Era esse o meu projeto. Daí, numa colônia de férias da Ação Católica, da JEC [Juventude Estudantil Católica], em janeiro, eu li uma edição dos “Cadernos de Nosso Tempo”, o de número quatro, do grupo que formaria naquele ano o Iseb [Instituto Superior de Estudos Brasileiros], com trabalhos do Hélio Jaguaribe, do Alberto Guerreiro Ramos, do Inácio Rangel, do Álvaro Vieira Pinto, do Roland Corbisier e do Nelson Werneck Sodré. Li e vi que lá tinha uma história do Brasil diferente: era um Brasil que tinha sido colônia, depois havia sido semicolônia, e isso era novidade para mim. E a partir de 1930 começava a revolução nacional brasileira e a revolução industrial brasileira, liderada por Getúlio Vargas, numa associação política que colocava juntos alguns setores da velha oligarquia, que Inácio Rangel chamava de substituidora de importações, com os industriais, a burocracia pública e os trabalhadores urbanos que estavam surgindo. Falavam tudo isso em função da eleição próxima do Juscelino Kubitschek, que eles apoiavam. Aquilo fez todo sentido para mim, entendi tudo que estava acontecendo em volta de mim, entendi todos os meus amigos, minha família, todo o país: ou era a UDN, liberal, associada ao império, tentando impedir a industrialização do país, porque o Brasil era essencialmente agrário — agora está ficando outra vez –, ou os que defendiam o desenvolvimento industrial brasileiro. Era o desenvolvimentismo, e o nacionalismo. Para enfrentar o império, você tem que ser uma nação, e uma nação tem que ter uma estratégia nacional de desenvolvimento. Tornei-me um nacionalista e um desenvolvimentista de esquerda – de centro-esquerda, pois nunca fui comunista. Naquele dia, em Itanhaém, na colônia de férias da JEC, depois de ler aquela revista que alguém tinha deixado em cima da mesa, tomei uma decisão: não vou ser mais juiz de direito. Vou terminar a faculdade de direito e eu já estava noivo desta senhora que é minha esposa, Vera Cecília –, mas vou ser sociólogo ou economista do desenvolvimento. E a minha vida foi isso.


Valor: Esse foi um caminho seguido sem desvios?


Bresser-Pereira: Nesse projeto, fui fazer meu mestrado nos Estados Unidos, por conta já da Fundação Getúlio Vargas. Então já fui influenciado pelas ideias americanas de modernização etc. Voltei para o Brasil e fui diretor do Pão de Açúcar — isso também faz com que você vá perdendo um pouco das suas garras, seu caráter crítico. Você começa a viver a sociedade e querer consertá-la, mas…


Valor: O senhor tinha militância partidária na época em que decidiu mudar de rumo?


Bresser-Pereira: Naquele momento, eu era do PDC, o Partido Democrata Cristão, e todos os meus amigos também – o Plínio de Arruda Sampaio, o Jorge Cunha Lima, o Chico Whitaker. Éramos do PDC de Franco Montoro e Queiroz Filho. Vieram, então, as eleições presidenciais de 1955, e o PDC aprovou a candidatura Juarez Távora. Daí eu me declarei rompido com o PDC. Resultado: quando, em 1958, o Carvalho Pinto ganhou a eleição em São Paulo, associado ao PDC, todos os meus amigos estavam no governo. Eu não, eu já estava na oposição. Como não sou político — sou capaz de fazer política, mas não é esta minha vocação –, rompi com o PDC, mas isso não significou que eu fosse bater à porta do PTB, não, deixei a coisa ficar.


Valor: Quando o senhor acha que houve uma interseção entre seu pensamento e do grupo de Fernando Henrique?


Bresser-Pereira:
Nos anos 70, o marxismo estava em plena moda. Foi quando conheci e fiquei amigo do Fernando Henrique Cardoso, do Arthur Gianotti etc. [então no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Cebrap], que eram de centro-esquerda e democráticos, como eu também me considerava. Naquele momento, eu já estava formado e tinha publicado meu primeiro livro, “Desenvolvimento e Crise no Brasil”, em 1968, que é um livro nacionalista, desenvolvimentista e de centro-esquerda. Fez um grande sucesso. E daí cheguei no Cebrap. Eu estava perfeitamente de acordo com eles [os integrantes do Cebrap] na luta pela democracia e igualmente fazia a crítica de um certo autoritarismo desenvolvimentista que tínhamos tido antes, da despreocupação com a democracia a que tendíamos antes; estava de pleno acordo com as posições de esquerda e já estava estudando antes e naquele momento, com Yoshiaki Nakano, a teoria econômica de Marx e Keynes e Kalecky. Só que não percebi que havia um conflito muito grande na parte nacionalista, que a teoria da dependência associada do Fernando Henrique era incompatível com o nacionalismo econômico. Só descobri isso depois que saí do governo de Fernando Henrique, muitos anos depois.


Valor: O senhor acha, então, que Fernando Henrique não contradisse, no governo, sua obra teórica?


Bresser-Pereira: Não contradisse do ponto de vista nacionalista.


Valor: Quando o senhor assumiu, de fato, a social-democracia?


Bresser-Pereira: No governo Montoro, eu completei 20 anos no Pão de Açúcar, já tinha resolvido a minha vida financeira não totalmente, mas razoavelmente bem, e fui para o secretariado. Depois de quatro anos no governo do Estado, fui para o Ministério da Fazenda. Eu tinha criado com Yoshiaki Nakano um departamento de economia na FGV, que era heterodoxo, nacional-desenvolvimentista e keynesiano. Nossas referências eram Marx e Keynes, e Celso Furtado e Inácio Rangel. Era assim que via o mundo e acho que foi isso que fiz no Ministério da Fazenda. No começo dos anos 80, pensei um pouco e decidi que seria um social-democrata. Naquela época, no meu grupo, no grupo do Cebrap etc., ser social-democrata era ser um traidor da revolução socialista. Eu disse: então eu sou um traidor da revolução socialista porque não sou de direita, sou de centro-esquerda, portanto sou social-democrata, a favor da reforma do Estado, do Estado de bem estar social, essas coisas.


Valor: Então, o senhor está onde sempre esteve?


Bresser-Pereira: No governo Fernando Henrique, ou nos anos 90, a hegemonia neoliberal foi muito violenta. Foi tão violenta que também atingiu a mim. Não escapei dela. Logo que saí do governo, publiquei um livro chamado “A crise do Estado”. Aí, resolvi publicá-lo em inglês e revi o livro todo, de forma que, quatro anos depois, ele foi publicado em inglês. Quando isso aconteceu, eu já estava entusiasmado com a vitória do Fernando Henrique e influenciado pelas ideias liberais. Eu não tinha me tornado um neoliberal de forma nenhuma, tenho certeza disso, mas estava mais perto do neoliberalismo do que estou hoje.


Valor: Caiu no conto da globalização?


Bresser-Pereira: Um pouco. Não totalmente, mas ninguém é de ferro. O grande problema da social-democracia é que ela se deixou influenciar, no mundo inteiro. A Terceira Via, por exemplo, hoje tão criticada, tinha um grande intelectual como Anthony Giddens por trás dela, um homem de centro-esquerda. Foi nesse estado de espírito que entrei no governo Fernando Henrique. Mas também foi lá que tomei um susto. Via um governo muito honesto, gente muito séria, via uma preocupação com a área social que era de centro-esquerda – comandada pela Ruth Cardoso e pelo Vilmar Faria, que faziam um belo trabalho, coordenando ministérios; o trabalho feito na educação e na saúde foi realmente bom. Por aí, estávamos em casa. Eu estava fazendo a reforma gerencial, que era uma reforma essencialmente para fortalecer o Estado social, pois era a reforma dos serviços sociais e científicos do Estado. Mas fiquei surpreso com duas coisas dentro do governo: uma, que não havia nenhuma perspectiva nacional, não havia nenhuma distinção entre empresa nacional e estrangeira. Muito pelo contrário: Fernando Henrique dizia forte e firmemente que não havia essa diferença, que era tudo rigorosamente igual – e isso é bobagem, é coisa que os americanos e europeus contam para nós, mas nunca praticaram. Aquilo me deixava muito incomodado. E a outra coisa que me deixou muito incomodado foi a política econômica.


Valor: Mas houve um grande êxito no combate à inflação.


Bresser-Pereira: Desde 1980, e até 1994, não fiz outra coisa na área econômica além de lidar com a alta inflação brasileira. Eu só tinha um objetivo: a alta inflação inercial que começa em 1980 e vai até 1994. O primeiro paper sobre inflação inercial no Brasil fui eu que escrevi. O primeiro paper que foi escrito no Brasil – acho que no mundo – sobre inflação inercial foi publicado por mim e pelo Nakano, em 1983. Em 1984, eu já estava publicando um livro sobre inflação inercial, chamado “Inflação e Recessão”. Nessa época, o pessoal da PUC também trabalhou em suas contribuições. Eu me associei a eles. Eu me associei a três jovens economistas, o Pérsio Arida, o André Lara Rezende e o Chico Lopes. Existiam oito economistas no Brasil que entendiam de inflação inercial: os três que eu citei, o Edmar Bacha, mais o Eduardo Modiano, no Rio, o Nakano, eu e o Mário Henrique Simonsen. Ninguém mais. E precisava que aquilo fosse entendido para neutralizar aquela inflação, que resultou finalmente no Plano Real, na URV. Tentou-se antes com as tablitas, mas não deu certo. O Plano Real foi um sucesso, construído rigorosamente sob uma política heterodoxa — não existiu nada mais heterodoxo do que a URV, nada a ver com as coisas que o FMI e o Banco Mundial nos diziam para fazer. Aí, no dia seguinte que o plano dá certo, o Brasil se entrega novamente de mãos atadas para o Banco Mundial e para o FMI. Ou seja, compõe com o Consenso de Washington, com a ortodoxia internacional. Essa é a política econômica e a política de reformas do Fernando Henrique. As privatizações, algumas que eu apoiei, e outras, como a do setor elétrico, com a qual eu não concordava, porque tem monopólio. Então, comecei a criticar essa política ao Fernando Henrique, mas internamente, nos quatro anos que estive no governo. Todo mês, pelo menos uma vez por mês.


Valor: Todo mês?


Bresser-Pereira: Eu tinha um despacho normal com o presidente uma vez por mês, pelo menos. Fiz uma carta para ele, a carta está no meu site. Naqueles quatro anos e meio em que trabalhei no governo, não escrevi nada sobre economia, a não ser um pequeno paper chamado “As três formas de desvalorizar o câmbio”. Eu sabia que o Brasil precisava dramaticamente valorizar seu câmbio, porque estávamos caminhando para uma crise financeira – e, de fato, em 1999, entramos de cabeça numa crise causada pela nossa incompetência ou pela nossa subordinação ao FMI, ao Banco Mundial, às finanças internacionais, ao neoliberalismo. Fiz o artigo e publiquei na “Revista de Economia Política”. E ninguém percebeu. Mandei para o Fernando Henrique também. Passou-se um mês ou dois e veio o Delfim, no seu artigo na “Folha”: “Olha o Bresser criticando o governo” (risos) É muito inteligente o raio do Delfim, acho que é o melhor economista que o Brasil tem.


Valor: Mas o senhor não assumiu uma posição de confronto com o governo.


Bresser-Pereira: Quando saí do governo, saí incomodado e fui para Oxford, mas eu não ia criticar o Fernando Henrique, uma pessoa de quem gosto, que respeito sob todos os pontos de vista, assim que saísse. E não falei nada, evidentemente. E quando fui fazer o primeiro paper, lá em Oxford mesmo, fiz um paper não sobre o Brasil, mas sobre a América Latina, não sobre os últimos cinco anos, mas sobre os últimos 20 anos.


Valor: Como foi o retorno, de fato, ao desenvolvimentismo?


Bresser-Pereira: Comecei em Oxford uma grande aventura intelectual, que resultou numa proposta de estratégia nacional-desenvolvimentista alternativa ao Consenso de Washington. Quando voltei, comecei a desenvolver um conjunto de ideias novas, em relação à macroeconomia do desenvolvimento, inicialmente com o Nakano, e nós fizemos dois papers, sobre a taxa de juros e a economia brasileira de um modo geral. O último artigo nasceu de um almoço meu com o José Aníbal, então presidente do PSDB. Eu estava indignado com a política econômica do Fernando Henrique e disse isso ele, que me propôs: “Por que você não escreve sobre isso?” Aí eu chamei o Nakano e fiz esse paper, que é a base do que se chama hoje de Hipótese Bresser-Nakano, que causou um grande debate no Brasil. Mas o PSDB não disse uma palavra sobre isso. Nunca me chamou para discutir o paper (risos). O paper chama-se “Uma estratégia de desenvolvimento com estabilidade”. Depois fizemos um segundo paper, este em inglês, chamado “Economics and the assault on the market”. Era o problema da taxa de câmbio.


Valor: Do ponto de vista acadêmico, portanto, o senhor não se considera da mesma escola que Fernando Henrique?


Bresser-Pereira: Fui dar uma aula em Paris, na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, e aí o Afrânio Garcia, um antropólogo que substituiu Ignacy Sachs na direção de um centro sobre o Brasil, e mais um cientista político do Rio Grande do Sul, o Hélgio Trindade, fizeram comigo uma entrevista para uma pesquisa, em outubro de 2003. Num certo momento, disse a eles: “Não sou da escola de sociologia de São Paulo, sou da escola do Iseb”. O Afrânio disse: “O quê?” Era uma surpresa para ele. Eu me formei a partir do pensamento do Celso Furtado, do Inácio Rangel — o Celso Furtado não foi do Iseb, mas era da Cepal, e a Cepal cepalina era estruturalista, como o Iseb. É claro que fiquei amigo da escola de sociologia de São Paulo, a escola do Florestan Fernandes e do Fernando Henrique, que vai dar na teoria da dependência, mas não tenho nada a ver com isso. Quando eu disse isso, o Afrânio pediu para eu fazer um seminário. Fiz dois papers. Um, que se chama “O conceito de desenvolvimento do Iseb” e outro, mais interessante, que se chama “Do Iseb e da Cepal à teoria da dependência”, em que vou fazer a crítica da dependência.


Valor: Isso foi em que ano?


Bresser-Pereira: Foi em 2004. Para fazer esse paper, fui rever as ideias do Fernando Henrique. Eu sabia que ele tinha deixado de ser esquerda, mas eu também tinha deixado um pouco de ser esquerda. Eu continuava um pouco e ele tinha deixado de ser mais do que eu. Mas o que não era claro para mim era a parte nacionalista, a parte de poupança externa, essas coisas. Aí fui ler outra vez o livro clássico dele e do Enzo Faletto (“Dependência e Desenvolvimento na América Latina). E vi que Fernando Henrique estava perfeitamente coerente. O que é a teoria da dependência? É uma teoria que vai se opor à teoria cepalina, ou isebiana, do imperialismo e do desenvolvimentismo, que defende como saída para o desenvolvimento uma revolução nacional, associando empresários, trabalhadores e governo, para fazer a revolução capitalista. O socialismo ficava para depois. A teoria da dependência foi criada pelo André Gunther Frank, um notável marxista alemão que estudou muitos e muitos anos na Bélgica e que em 1965 publicou um pequeno artigo chamado “O desenvolvimento do subdesenvolvimento”, brilhante e radical. É a crítica à teoria da revolução capitalista, à teoria da aliança da esquerda com a burguesia. É a afirmação categórica de que não existia, nunca existiu e nunca existiria burguesia nacional no Brasil ou na América Latina. No Brasil, os seguidores de Gunther Frank eram o Ruy Mauro Marini e o Teotônio dos Santos, mas no final, e curiosamente, o seguidor deles mais ilustre vai ser o Florestan Fernandes maduro. Eles concordam que não existe burguesia nacional. Quando a burguesia nacional é compradora, entreguista, associada ao imperialismo, a única solução é fazer a revolução socialista. É bem louco, mas é lógico. Aí vieram o Fernando Henrique e o Enzo Faletto e disseram que havia alternativa, a dependência associada. Ou seja, as multinacionais é que seriam a fonte do desenvolvimento brasileiro, cresceríamos com poupança externa. Era a subordinação ao império. Claro que o império ficou maravilhado. A teoria da dependência foi um grande sucesso – e tem um artigo realmente engraçado do Fernando Henrique, em que ele fala com surpresa da grande recepção que teve a teoria da dependência associada nos Estados Unidos. Ele é um homem inteligente e correto, não estava fazendo uma adesão, mas o fato concreto é que os outros liam e faziam suas interpretações. Na prática, era uma maravilha: a esquerda americana, que se reúne nas conferências da Latin America Student Association, nos Estados Unidos, encontrava um homem democrático de esquerda que via nos Estados Unidos um grande amigo na luta pela justiça social. Quando fiz essa revisão, estava começando a romper com o PSDB.


Valor: E quando o senhor chegou ao PSDB?


Bresser-Pereira: Em 1988, fui um dos fundadores do PSDB. Na época da fundação, o Montoro não queria o nome de social-democracia para o partido, porque tinha origem na democracia cristã, que a vida inteira tinha lutado contra os social-democratas na Inglaterra, na Alemanha e na Itália. Nós ganhamos, pelo fato de sermos centro-esquerda. Mas aí ele dizia: “Muito bem, mas e se esse bendito PT, que se diz revolucionário, que tem propostas para a economia brasileira completamente irresponsáveis, chega no poder ou perto do poder e se domestica, e se torna social-democrata, como aconteceu na Europa? Eles têm toda uma integração com os trabalhadores sindicalizados, que nós não temos, então nós vamos ser empurrados para a direita”. E foi isso que aconteceu.


Valor: Quando o senhor considera que o PSDB começa essa trajetória para a direita?


Bresser-Pereira: O Fernando Henrique teve dois azares: o primeiro foi que governou o país no auge absoluto do neoliberalismo, enquanto Lula governou no momento em que o neoliberalismo começa a entrar em crise; e o segundo é que seu governo não gozou do aumento dos preços das commodities de que o Lula desfrutou. Mas o fato concreto é que no governo Fernando Henrique o partido já caminhava para a direita muito claramente. Daí o PT ganhou a eleição e assumiu uma posição de centro-esquerda, tornou-se o partido social-democrata brasileiro — e o PSDB, naturalmente, continuou sua marcha acelerada para a direita. Nas últimas eleições, ele foi o partido dos ricos. Isso, desde 2006. É a primeira vez na história do Brasil que nós temos eleições em que é absolutamente nítida a distinção entre a direita e a esquerda, ou seja, entre os pobres e a classe média e os ricos. E um partido desse não me serve, seja pela minha posição social-democrata, seja pela minha posição nacionalista econômica – tenho horror profundo e absoluto do nacionalismo étnico. Acho que a globalização é uma grande competição a nível mundial, quando todos os mercados se abriram, e passou a haver uma competição global não apenas das empresas, mas dos países. E você precisa, mais do que nunca, uma estratégia nacional de desenvolvimento.


Valor: Retomar a ideia de nação, que ficou meio apagada nos anos 90?


Bresser-Pereira: Isso, retomar a ideia de nação. E a própria ideia de centro-esquerda, que ficou um pouco apagada nesse período. Às vezes me perguntam: “Se você não é mais um membro do PSDB, foram eles que mudaram ou você?” Fomos os dois. Eles mudaram mais para a direita e eu mudei um pouco mais para a esquerda. Recuperei algumas ideias nacionalistas que achava muito importantes. E consegui desenvolver – e isso é rigorosamente novo – uma macroeconomia estruturalista do desenvolvimento. São três livros: o que tem a teoria política (“Construindo o Estado Republicano”), que saiu em 2004 pela Oxford University Press, e no Brasil em 2009; um livro econômico, “Globalização e Competição”; e um de teoria social, que estou terminando e vou enviar para uma editora agora (“Capital, Organização e Crise Global: Teoria Social para o Longo Século XX: 1900-2008″). Uma coisa importante também é que, nesses 11 anos, pela primeira vez na minha vida, desde 1959/61, sou intelectual em tempo integral. Como não faço outra coisa a não ser isso, as ideias se organizaram, se estruturaram. Estou muito ativo.


Valor: Houve uma grande ofensiva contra os gastos sociais no governo Fernando Henrique. O que o senhor acha disso?


Bresser-Pereira: Foi feito um grande contrato no final da ditadura, que se consolidou na Constituinte. A grande coalizão política das diretas-já, da transição democrática, foi dizendo o seguinte: o Brasil é muito desigual, muito injusto, nosso objetivo é diminuir a desigualdade. Como? Através de expropriação? Não, isso nem se discutia. Através de impostos progressivos ou coisa que o valha? Não, nem pensar. Não se discuta isso. Como então? Aumentando o gasto social. E foi o que se fez. A Constituição de 1988 é isso, reflete essa visão.


Valor: A Constituição de 1988 é populista?


Bresser-Pereira: É um pouco populista também. Mas a coisa para mim mais importante é que naquela Constituição se definiram os direitos sociais, entre eles se estabeleceu o direito universal à saúde. Eu me lembro muito bem quando o meu amigo Fernão Bracher falava — e não apenas ele: “Essa Constituição estabelece princípios que não podem jamais ser cumpridos”. Não é verdade. No meio desses direitos que foram estabelecidos tinha o direito universal à saúde. E o que aconteceu? Foi para a Constituição e foi cumprido. Eu duvido que você encontre qualquer outro país com uma renda per capita como a nossa que tenha um sistema universal de saúde. Os Estados Unidos não têm. E mesmo esses países europeus não têm muito isso.


Valor: Nesse período pós-redemocratização, havia populismo ou acirram-se as disputas ideológicas no parlamento?


Bresser-Pereira: Havia populismo, sim. Para se ter uma ideia, quando assumi o Ministério da Fazenda, o Celso Furtado e o Olavo Setúbal chegaram a me dizer, quase com as mesmas palavras: “Bresser, você é um louco, você está assumindo o Ministério da Fazenda na pior crise desde 1930″. Eu estava sabendo. Alguém tinha que assumir. Por que não eu? A primeira coisa que vi foi o país quebrado em nível internacional. Tinha moratória e as reservas estavam zerando, zeravam em três meses. Aliás, quem me informou isso foi o [José] Sarney (presidente da República de 1985 a 1990), porque eu nem sabia quando fui conversar com ele. E depois fui conferir com o Banco Central se era verdade. Era. A parte fiscal também estava um caos total, tudo quebrado, governo federal quebrado, governos estaduais quebrados. Então, eu disse que ia fazer ajuste fiscal. Aí veio a bancada do PMDB, que era o meu partido, me visitar, a chamada “bancada econômica do PMDB”. Eu disse para eles que a situação era muito grave. Não contei que estava fazendo o Plano Bresser, pois não podia contar, mas contei que ia fazer o ajuste. Eles ficaram indignados e montaram uma campanha para me expulsar do partido. A convenção do PMDB estava programada para 30 de junho. Sabendo daquilo, fui falar com o doutor Ulysses e disse: “Estão querendo me expulsar do partido porque defendi o ajuste fiscal”. O doutor Ulysses falou com a Conceição [Maria da Conceição Tavares] e com o Luciano Coutinho, e foram os dois que seguraram um pouco. O populismo era total. Foi aí que resolvi também que ia conversar com o FMI. Mas o FMI estava apavorado, porque era proibido para um ministro conversar com o FMI. Aí eu disse: “Vou conversar, não vou esconder nada”.


Valor: Qual a sua visão da política econômica do início da Nova República?


Bresser-Pereira: A democracia tinha levado a uma visão da economia liderada por João Manuel Cardoso de Mello, que era um desastre absoluto. E o Luiz Gonzaga Belluzzo, que é um excelente economista, estava quieto. João Manuel é que entrava em cena quando se tratava de decisões políticas. O Dilson Funaro (ministro da Fazenda) não entendia nada.


Valor: Mas era a grande estrela do Plano Cruzado, não era?


Bresser-Pereira: De fato. O Dilson era ministro, isso era em agosto de 1986, e nós fomos jantar com ele. Ele chegou um pouco atrasado e as pessoas praticamente levantaram quando ele chegou. Ele tinha virado um deus. Daí, conversando com ele, eu disse: “A situação é muito grave, esse plano vai estourar, é insustentável, é preciso fazer um ajuste fiscal grande”. Ele virou-se para mim e disse: “Pode deixar, eu vou para a televisão, faço um apelo e o povo baixa o consumo”. Ele me disse isso tranquilamente. Aí, em janeiro, a coisa já tinha explodido, eu encontro com o João Manuel no Palácio dos Bandeirantes e disse a ele: “É preciso fazer um ajuste fiscal imediato”. E ele respondeu: “Não, pode deixar, está tudo sob controle”. E aquilo explodindo… E explodiu de vez, foi uma coisa terrível, foi a explosão mais violenta que ocorreu no país. Havia tido uma expansão enorme da renda, dos salários e dos impostos e depois caiu tudo.


Valor: E o senhor assumiu o Ministério da Fazenda.


Bresser-Pereira: Pois é. E daí veio o Walter Barelli, que era presidente do Dieese [Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos], e disse que o Plano Bresser implicou numa redução de 30% dos salários. De fato, estava havendo uma redução de 30% dos salários. Mas eu disse: “Barelli, não é o Plano Bresser, houve um aumento de 30% dos salários no Plano Cruzado e, com a explosão da inflação, houve uma queda dos salários do mesmo valor. E com o meu plano eu estou aumentando em 7% o salário real, estou recuperando o salário real”. Não havia santo que fizesse o Barelli entender. Falei, então: “Espere as estatísticas”. Só que elas demoravam três meses. Três meses depois, deu exatamente o que eu tinha falado.


Valor: O que o senhor acha que está acontecendo com o quadro partidário?


Bresser-Pereira: O PSDB, paradoxalmente, e apesar da história de seus líderes, tornou-se um partido de centro-direita. O PT se tornou um partido de centro-esquerda, o que também era previsível. Falam muito mal do PMDB, e é razoável que se fale, mas é o partido do poder, que está sempre no poder porque está no centro. Isso faz parte. É preciso separar bem: existem os partidos que são meramente de negócios. Não é que todos são. O PSDB não é um partido de negócios, o PT certamente não é, parecia que o PSB não era, mas está virando a curto prazo, o PTB sempre foi um partido de negócios, e vários outros. O que chamo de partido de negócios é o partido em que os deputados estão lá, os políticos estão no partido exclusivamente com o objetivo de defender os seus interesses, e mais nada. Tenho uma briga muito grande com os cientistas políticos neoliberais, da escolha racional, para quem os políticos são homens que meramente se preocupam com seus interesses, ou fazem escolhas exclusivamente entre a vontade de ser reeleitos, que é o seu interesse, e a corrupção. Estou cansado de conhecer políticos que agem de acordo com o interesse público, que fazem trade-offs entre seus interesses e o interesse público. Mas o fato é que, em alguns partidos, os políticos são rigorosamente de acordo com o governo neoliberal — não que eles sejam neoliberais, mas são corruptos mesmo.


Valor: Há políticos para todos os gostos, então.


Bresser-Pereira: Uma coisa que as pessoas têm que entender é que a ética da política é muito diferente da ética de negócios. Na ética dos negócios, é razoável que cada um defenda seus interesses; na ética da política isso não é aceitável. Felizmente, temos muitos políticos que defendem o interesse público, muitos no PMDB também. Existem bons políticos em todos partidos, embora o interesse público seja mais forte em alguns. Acho que uma análise mais interessante que foi feita da política nos últimos anos foi a do lulismo, do André Singer, pois ele separa o lulismo do PT. Entendo que o PT perdeu uma parte de seu apoio ideológico quando fez seus compromissos, mas é muito importante na política aceitar compromissos. O que existe no Brasil é a crítica aos políticos feita por jornalistas e por jornais, partilhada pela opinião pública normal, que não compreendem a lógica do “compromise”. Isto está na minha cabeça desde criança: quando eu tinha uns oito ou nove anos, perguntei para o meu pai o que era política. Ele disse: “Política é a arte do compromisso”. Entendi naquela ocasião, e isso ficou na minha cabeça. Porque a única forma de conseguir maioria e governar é fazendo compromissos, não tem jeito. O eleitor não tem compromisso nenhum: ele vota naquele que ele acha melhor e acabou-se. Agora, quando você se vê governador, presidente, tem que fazer compromisso, não tem jeito. Compromissos são concessões políticas, acordos, o que é absolutamente legítimo. É o que Max Weber chama de ética da responsabilidade. Nossos políticos não são tão ruins quanto dizem.


Valor: O senhor acha que tem uma demonização aí.


Bresser-Pereira: Ah, tem uma demonização.


Valor: A quem isso serve?


Bresser-Pereira:
Isso é muito claro. Eu uso uma frase do Jacques Rancière, sociólogo político francês, de esquerda, sobre o ódio à democracia. A democracia sempre foi uma demanda dos pobres, dos trabalhadores, de classes médias republicanas, nunca foi dos ricos. Os ricos odeiam a democracia, embora digam que defendem. Eles sabem que a democracia não vai expropriá-los, que a ditadura da maioria não vai expropriá-los, mas eles continuam liberais e, se não têm ódio, pelo menos têm medo da democracia. E qual a melhor forma de neutralizar a democracia? São duas. Uma é fazer campanhas eleitorais muito caras. Então, financiamento público de campanha, jamais. Rico não aceita isso em hipótese alguma. A outra estratégia é desmoralizar os políticos.


Valor: A crítica também não é democrática?


Bresser-Pereira: Sim, é claro que pode criticar. A imprensa faz um grande serviço à nação criticando os políticos, e criticando os capitalistas, e criticando tudo em volta, essa é sua função. O ponto é até onde chega a crítica razoável e até onde vira uma crítica violenta, que é um desrespeito às pessoas e é uma forma de limitar o poder dos políticos, e, portanto, o poder do povo — isso é uma dialética também. Uma coisa clara é que a corrupção existe porque o capitalismo é essencialmente um sistema corrupto e os capitalistas estão permanentemente corrompendo o setor público. É fácil verificar quem são os servidores públicos mais corruptos. Quem corrompe professor universitário? Ninguém. E quem corrompe delegado de polícia? É claro que tem um monte de gente interessada em corromper delegado de polícia, fiscal da Receita.Os fiscais da Receita não são intrinsecamente mais desonestos que os professores. Fizeram concursos mais ou menos igualmente, são pessoas igualmente respeitáveis, só que uns são submetidos a processos de corrupção por parte das empresas; outros, não.


Valor: O capitalismo é ruim?


Bresser-Pereira: Acho o capitalismo o melhor sistema que existe, porque não tem outro. Acho que a democracia é, de longe, o melhor sistema, apesar de tudo. Outra coisa é o problema do progresso. Acredito piamente no progresso, mas porque acredito na revolução capitalista eu acabei de entender o Hegel. E o que entendi essencialmente do Hegel? Para Hegel, o Estado é a realização suprema da razão humana. É isso que ele diz, de várias maneiras. O Estado é, em primeiro lugar, a lei, depois a organização em torno dessa lei. Onde a razão humana está melhor expressa, no Haiti ou na Dinamarca? É evidente que na Dinamarca. O Estado dinamarquês é muito superior ao Estado haitiano, que nem existe, ou mesmo ao Estado boliviano ou paraguaio, ou mesmo ao Estado brasileiro, ou ao Estado francês, que é bem melhor ainda que o nosso. O americano não é grande coisa, e não é melhor que o nosso. A razão humana que os dinamarqueses colocaram na construção do seu Estado e da sua sociedade foi superior à nossa. Espero que cheguemos lá. E essa construção se faz com a política, essa é uma construção e é política. É uma construção que você está fazendo todo dia. Ernest Renan diz que a nação é uma construção de todos os dias – a sociedade civil é uma construção de todos os dias, o Estado é uma construção de todos os dias. Isso te dá uma visão do mundo que é otimista. Afinal, você acredita que vai dar certo. Essa construção é sempre feita de baixo, é resultado de uma luta social dos mais pobres, que defendem seus interesses, e de uma parte da classe média que eu chamo de republicana. E o que é uma classe republicana? Um indivíduo republicano é aquele que é capaz de agir não apenas de acordo com os seus próprios interesses, mas tem que definir o que é interesse geral. A tendência nossa, de todas as classes, é mostrar o seu interesse como interesse público e acabou-se. É muito fácil desse jeito. Mas há pessoas que são capazes – e eu estou convencido que é um número razoavelmente grande de pessoas – de fazer os trade-offs entre os interesses próprios e o interesse público.


Valor: O que o senhor acha do Bolsa Família?


Bresser-Pereira: Acho uma maravilha. Sempre acreditei piamente na competição. Quando pensava naquela emenda da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade –, eu entendia perfeitamente as ideias de liberdade e igualdade, mas a fraternidade eu achava simplesmente simpática. Nesses últimos anos, todavia, descobri que é absolutamente fundamental. E por quê? Porque na sociedade em que vivemos existe uma quantidade muito grande de pessoas cuja capacidade de competir é muito limitada. Mesmo que tenha educação, por características pessoais, geralmente de equilíbrio emocional, às vezes de inteligência, essas pessoas não são capazes de se defender da competição como devem. E aí que entra a fraternidade. O Bolsa Família é um mecanismo altamente fraterno. O Lula sabe da necessidade da fraternidade, da solidariedade, a vida dele deve ter lhe ensinado. Ele é perfeitamente capaz de competir por conta dele, isso é evidente. Mas sabe a importância da solidariedade.


Valor: O Estado social é o caminho natural para o país?


Bresser-Pereira: No Brasil, o Estado social é uma coisa séria. Uma carga tributária de 35% é muito alta, de fato, mas isso é o resultado de um acordo social e é uma compensação. Na Ásia, a carga tributária é muito menor, e lá não existe Estado social, mas as medidas de distribuição de renda são muito melhores. Os países asiáticos que não passaram pelo comunismo já tinham um esquema de solidariedade familiar e um esquema de mercado amarrado no campo de convenções, que permite uma distribuição de renda muito melhor. Então, o Estado é muito menor. No Brasil aconteceu o contrário, inclusive por causa de nossa origem escravista muito forte e relativamente recente. O Estado social veio aqui como uma solução muito forte, muito boa, e é um elemento absolutamente fundamental. Do ponto de vista ético, é um elemento de fraternidade e de solidariedade, mas do ponto de vista social e político é um fenômeno de coesão. A estabilidade desse sistema é dada pela coesão social. Isso não foi o Lula quem fez, foi a democracia, o próprio Sarney já começou, depois Itamar, Fernando Henrique e Lula continuaram. Só no governo Collor isso parou um pouquinho. É um projeto, um compromisso, mas agora no outro sentido: a palavra “compromisso” em português é uma desgraça; em inglês são duas palavras, “commitment” e “compromise”. Aqui no Brasil é uma só, tem que explicar. Naquela época, o compromisso foi o “commitment” de fazer a distribuição via gasto social. Dizem que o Bolsa Família desestimula o trabalho. Isso é bobagem, é absolutamente secundário.

9 de abril de 2011

"Companheiro" e a Guerrilha do Araguaia



"Companheiro" é uma música gravada por Naire Siqueira em 1970, composta em parceria com Tibério Gaspar. Recentemente a música foi gravada por Maria Eugênia e foi tema de abertura da novela "Araguaia", da TV Globo.

Como exibido no vídeo, a música serviu de alento nos campos de luta no Araguaia. A Guerrilha do Araguaia ocorreu entre meados da década de 1960 e meados da década seguinte, na região fronteiriça entre os Estados de Tocantins, Maranhão e Pará. A Guerrilha sofreu forte repressão por parte das Forças Armadas, no auge da Ditadura Militar que vigorava no Brasil desde 1964.

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